Chegou ao Benfica em 1988 e, depois de sair para o PSG, em 1991, voltaria à Luz em 1995. Espalhou magia até 2004, altura em que, aos 40 anos, decidiu finalmente terminar a carreira. Em conversa com A BOLA, o médio, que reside em Portugal há muitos anos, recordou e partilhou momentos e histórias. O seu objectivo agora é treinar.
- Já passaram mais de 22 anos desde que chegou ao Benfica. Ainda se lembra dos pormenores da sua transferência para a Luz?
- Estava tudo a correr bem até o senhor Manuel Barbosa [n.d.r. empresário de Valdo] dar uma entrevista à televisão de Porto Alegre, a dizer que o Benfica tinha dinheiro. Já não me lembro bem dos valores, mas se era um milhão passou para dois [risos]. Deu grande confusão porque o Benfica não queria pagar e o presidente do Grémio dizia: Quem tem, paga! Mas tudo se revolveu.
- Que impressões teve ao chegar a Lisboa?
- Já tinha estado em Lisboa antes disso. Salvo erro foi a 19 de Dezembro de 1987, depois de um jogo amigável entre as selecções de Brasil e Alemanha, em Brasília. Estava de férias e o Manuel Barbosa, com aquela lábia, disse para eu vir cá só para conhecer o clube. Quando saí do aeroporto, caramba... Um montão de jornalistas! Tiraram-me fotos com a águia e tudo, imaginem quando voltei para Porto Alegre [risos]... Portant,o quando vim em definitivo, em 1988, foi tudo muito tranquilo porque conhecia o clube. Já não me assustei tanto com a imponência do velho Estádio da Luz.
- Quem eram os bem-dispostos e os mal-humorados da equipa?
- O Lima era muito engraçado, o Hernâni, o Silvino, o Pacheco e o Veloso também. O Mats [Magnusson] era, digamos, o mais emburrado, mais introvertido. O Thern, com aquele jeitinho dele, era muito engraçado e o Paneira também. O Schwarz era o mais sério de todos, um profissional extremo [risos].
- E o mais brincalhão?
- O Paneira, claramente, mas o mais engraçado acabava por ser o Lima, pela figura dele, com aquele topete enorme, a tocar violão [risos]. Recordo-me da estreia dele a titular, lá para a 12.ª jornada, depois do normal período de adaptação. Estávamos no túnel da antiga Luz e o presidente João Santos foi falar com ele. Vamos lá Lima, duas batatas hoje!, disse. O Lima voltou-se para ele e disse, apontando para o Magnusson: Fogo, então o seu avançado tem um golo em onze jornadas e eu que vou jogar pela primeira vez de início tenho de marcar dois?! O Lima tinha muitas tiradas assim [risos]...
- Teve alguma praxe no Benfica?
- No Benfica não, mas no Grémio tentaram. Eu era muito magrinho quando cheguei, pesava 43 ou 44 quilos, era só cabelo e dentes. Eles estavam sempre a dizer-me: É hoje, é hoje! Eu morria de medo mas não podia dar parte fraca, tinha de cantar de galo. Um dia avisei-os. Olhem uma coisa, eu sou da favela. Se me fizerem alguma coisa vão ver o que vos faço enquanto dormem, um a um! A verdade é que nunca me tocaram, ficaram com medo que eu fosse maluco [risos].
rui costa e o jeito malandro de jogar
- Quem era o líder no balneário?
- O Veloso foi sem dúvida um grande capitão, mas não havia uma só voz. Cada um tinha algo a dizer. O Ricardo Gomes, que dispensa apresentações, o Vítor Paneira... O Schwarz falava pouco mas também se expressava à sua maneira, dentro do campo, com aquele estilo aguerrido que não dava uma bola como perdida. E, claro, tenho de mencionar o Mozer, um dos grandes líderes do Benfica quando cheguei.
- O Rui Costa acabou por ser o seu sucessor.
- Sim. Já tinha feito talvez uns dois jogos com o Rui e o Paulo Sousa. Disse aos dirigentes: Vocês não precisam de ir buscar alguém para o meu lugar, têm o Rui Costa. Eles diziam-me que ele era novo, mas tentei fazê-los ver que quem sabe, sabe e há que começar por algum lado.
- O que via nele?
- O Rui tinha uma forma de jogar diferente, mais parecida com a do jogador brasileiro do que com a do europeu. Tinha aquele jeito malandro de jogar, de bater na bola, com disciplina mas um estilo mais vagabundo, a fugir ao protocolo. Como eu e como a maioria dos sul-americanos.
- Você e o Ricardo Gomes tiveram carreiras paralelas durante muitos anos, eram quase inseparáveis...
- Vou dizer-lhe uma coisa, no bom sentido: dormi mais vezes com o Ricardo do que com a minha mulher [risos]. Fomos colegas de quarto durante 12 anos! Bastava quase um olhar para comunicarmos. Naqueles jogos cruéis, em que sentíamos que as coisas estavam muito complicadas, eu dizia-lhe: Bacana, que jogo feio... E ele respondia-me: Nem me digas nada, hoje a coisa está horrível... Sempre tivemos grande cumplicidade. Eu, o Ricardo e o Mozer tratávamo-nos por bacana. Ainda hoje são grandes amigos, tal como o Lima.
- Lembra-se de alguma história engraçada com o Ricardo Gomes?
- Houve uma na minha segunda passagem pelo Benfica. O treinador era o capitão Mário Wilson e tínhamos jogo com o Sporting, em Alvalade. Um exercício do treino culminava com centros para a área e finalização, e num dos cruzamentos o Preud'homme socou a bola, ela passou por cima do Mário Wilson e apareceu o Ricardo Gomes, que rematou de primeira e acertou mesmo no cachaço do professor, que disse logo, com aquela voz característica. F... Quem fez este remate não joga domingo! Mas quando olhou para trás e viu o Ricardo Gomes mudou de ideias. Esse joga, esse joga! [risos].
- No actual Benfica, quem são Valdo, Mozer e Ricardo?
- [risos] É difícil comparar. O Benfica tem jogadores fantásticos. O Aimar é realmente diferente, tem magia e um toque refinado. Pessoalmente, gosto muito do Luisão, grande central, e vê-se que é um jogador que sente o Benfica a cem por cento. David Luiz também é bom jogador e o Fábio Coentrão é fantástico.
- Se pudesse, o que mudava na sua carreira?
- Talvez não devesse dizer isto, mas, sinceramente, se estivesse a começar tentaria ser mais polémico, pois hoje esse tipo de jogadores são mais mediáticos e têm mais importância. Digo isto, mas, devido à minha forma de ser, não sei se teria coragem. E atenção: não basta ser polémico, há que ter talento também e corresponder na arena. Da mesma forma, a imagem tem muito peso actualmente: um jogador com olhos verdes e cabelo loiro e espetado vende mais do que um negão feio de dentes tortos. O negão até pode jogar melhor mas só vende 50 camisolas, ao passo que o outro não joga tanto mas vende um milhão...
- E mágoas?
- Mágoa só tive uma, foi o facto de o Benfica não me ter deixado ir aos Jogos Olímpicos de Seul. Fiquei cá para disputar uma porcaria de um jogo com o Penafiel, com todo o respeito por esse clube. Ganhámos nove a zero. Era o capitão da selecção olímpica brasileira, que perdeu na final para a Rússia. Mas naquela época os clubes podiam proibir os jogadores de ir... Se me perguntar também se merecia estar mo Mundial 1994, respondo que sim, mas o Carlos Alberto Parreira assim não entendeu. E agora vou dizer-lhe uma coisa, a propósito da selecção: não queria estar na pele dos jogadores brasileiros em 2014 [risos]. Só há um resultado possível, a vitória [risos].
- Recorda-se bem da final da Taça dos Campeões Europeus, em 1990, perdida para o Milan?
- Naqueles jogos tudo se decide pelos detalhes. Eles tinham uma grande equipa... Nós também, mas eles... Jogámos de igual para igual, mas o Hernâni, que chamávamos de Mano, ouviu um apito da bancada, hesitou, parou e o Rijkaard furou e marcou.
- Perdeu ainda uma final da Taça de Portugal, frente ao Belenenses.
- Aquela derrota custou-me, até porque tinha pela frente o Baidek, e perder para o Baidek é brincadeira... [risos] Senti um pouco culpado pela derrota porque fui expulso por causa de uma discussão com o árbitro Alder Dante.
- A sua família não ficou triste.
- É verdade, quase toda a minha família sempre foi do Belenenses. A minha filha fugiu um bocadinho, é do Sporting, mas a minha esposa é do Belenenses a mil por cento. Praticou esgrima no clube e o avô dela foi um dos fundadores do clube. Sou o único a carregar a bandeira do Benfica [risos]. Mas a verdade é que também tenho um grande carinho pelo Belém.
- Nunca pensou em treinar o Belenenses?
- Foi se calhar a coisa em que mais pensei. E é um dos meus grandes objectivos. Mas vou fazer o caminho inverso: em Janeiro devo regressar ao Brasil. Devo ficar dois ou três anos, como treinador e gestor de uma equipa, o Serra Macaense, da II divisão carioca. Tenho confiança de que vou fazer um bom trabalho e o objectivo é plantar lá uma semente para colher aqui. Tenho o curso de treinador e já exerci no Brasil, em Balneário Camboriú e no União de Rondonópolis, em Mato Grosso.
- Que treinador o marcou mais?
- Tive vários, no Brasil e na Europa. O Toni, por exemplo, era incrível. Ainda hoje me pergunto como pode estar parado. Creio que acabou por ser prejudicado por aquela sua forma de ser apaixonada, aquele coração. Quando se segue a carreira de jogador ou treinador não se pode exteriorizar certas coisas, há simplesmente que ser profissional, e aquela imagem do Toni a chorar quando saiu do Benfica fragilizou-o muito. Mas é meu amigo pessoal, amo-o e, tecnicamente, foi dos grandes treinadores que tive. O Eriksson era um estratega, o Artur Jorge dava muita força mental aos jogadores, era fantástico nisso...
- Cumpria sempre à risca o que os treinadores lhe diziam?
- Às vezes fugia um pouco do guião, mas quando o fazemos convém que dê certo, senão estamos ferrados [risos]. Lembro-me de um jogo contra o Marítimo, aqui na Luz, em que estava a chover muito, e o periquito, alcunha que dei ao Eriksson, disse que todos tinham de jogar com pitons de alumínio. Mas eu nunca joguei de pitons de alumínio na minha carreira, nunca. Lá tive de entrar assim, mas parecia que estava de saltos altos [risos]. Fui à linha lateral e disse ao Luís, o roupeiro, para me trazer umas botas com pitons de borracha. Ele foi buscar e a partir daí comecei a jogar normalmente. No fim, o Eriksson só dizia: Porca miséria, nunca mais digo nada ao Valdo...
- Quem é o melhor treinador do Mundo?
- Mesmo que se queira dar outra resposta, é o José Mourinho. Os resultados e os números comprovam-no. É realmente diferente, muito mais próximo dos jogadores do que às vezes parece. E amo as respostas e as entrevistas dele [risos].
- E o melhor jogador do mundo?
- É o Messi. O Cristiano Ronaldo também é fantástico, é uma máquina muito bem trabalhada, mas o Messi é a essência do futebol, é puro.
- Que companheiros mais o impressionaram na sua carreira?
- Um foi sem dúvida o João Vieira Pinto, o Pintinho. Sempre tive curiosidade de jogar com ele, e um dos motivos porque voltei ao Benfica foi por causa dele. Era um jogador diferente dos outros, pequeno mas atrevido e muito inteligente, com notável visão de jogo. E o que mais me impressionava era o poder de elevação dele. Para mim, o João está entre os ilustres do futebol português, ao lado de nomes como Figo, Futre e o pequeno génio, o Chalana, que continua a ser o meu preferido. Aliás, quando eu vim para o Benfica na primeira vez, o Zico disse-me: Vais encontrar lá um tipo chamado Chalana. Joga muito, é brasileiro. Mas o João também era de outro planeta, uma entidade à parte dentro do Benfica. Adorava jogar com ele.
- Ofereceu Bruno Telles ao V. Guimarães e tem aconselhado outros jogadores ao futebol português.
- Sim. Já aconselhei muitos ao Benfica, mas nunca aconteceu encaixar algum. Mas não sou empresário e não tenho jogadores, apenas sou apaixonado por futebol, gosto de observar e aconselhar jogadores que dignifiquem o futebol brasileiro. Aqui em Portugal já aconselhei o Jonas, o Deivid, o Léo, o Gamarra, o Ibson ou o Paulo Almeida, que não deu certo. Também me engano, claro, mas acredito que a minha margem de erro é menor em relação a muitas outras pessoas.
- Como tem visto o Benfica desta época?
- Perdeu Ramires e Di María, duas peças importantes do esquema da época passada, mas não podemos agarrar-nos a isso porque senão quando o Eusébio parou o Benfica tinha fechado as portas. Não sei o que tem faltado, só sabe quem acompanha por dentro no dia-a-dia, mas o que vejo de diferente é a falta de alegria dos jogadores. Vejo uma equipa triste e sem aquela desenvoltura de jogo contagiante. Quem percebe um pouco de futebol vê e sente isso, mas o motivo não sei.
- Era um jogador elegante, que opinião tem sobre o Cardozo, cujo estilo gera tanta discussão?
- Quando os avançados fazem bons jogos e ajudam a equipa mas não marcam golos, acabam também por ser criticados. Eles só têm uma solução: marcar golos, sejam bonitos ou feios, com a canela ou de bico. E o Cardozo cumpre isto à risca, marca golos, independentemente de participar muito ou pouco no volume de jogo da equipa. Ele é tipo um atirador de elite e esses só são chamados quando é preciso, não andam aí na rua para cima e para baixo de arma na mão.